Álvaro Cordeiro não é o nome de uma pessoa real... ou até poderá ser, mas não é o nome que figura no Cartão do Cidadão do nosso entrevistado desta semana. Álvaro Cordeiro é um escritor. Escreve prosa, poesia e para teatro, e as palavras emanam de si naturalmente, transformando-se em textos e livros. Álvaro Cordeiro vive num professor de História português, é a sua “personalidade literária”, como o próprio gosta de afirmar, e é também o nosso entrevistado desta semana!
Recordas-te de como começou o teu interesse pela escrita? Das primeiras coisas que escreveste?
Acho que o meu interesse pela escrita começou com a aprendizagem da mesma. É um pouco cliché dizer isto, mas é a pura verdade: desde que, na escola, comecei a desenvolver a prática da escrita, tomei-a como um meio privilegiado de expressão e comunicação. Sou bastante introvertido, a maior parte das vezes custa-me falar e expor-me na oralidade. A escrita sempre me apareceu, por isso, como um território agradável. As primeiras coisas que me lembro de ter escrito foram trabalhos escolares: composições, exercícios de poesia, textos para representações teatrais… Era sempre muito bem classificado nesses trabalhos, mas aquilo saía-me com tanta facilidade que nunca lhe dei nenhum valor especial…
Sabemos que também escreves para teatro, representas e encenas. Podes falar um pouco dessa experiência? Julgas que influencia o teu tipo de escrita?
A escrita para teatro começou por ser uma coisa muito instrumental: na escola e nos grupos de jovens a que pertenci era comum, naquela época, usar a dramatização para transmitir mensagens; ora, alguém tinha que escrever os textos e como eu até gostava de escrever… Só mais tarde, quando andava à volta dos trinta anos e formei um grupo de teatro amador, é que desenvolvi a escrita para teatro de forma mais séria. Nessa altura eu já escrevia para as gavetas e tinha uma forma de escrever algo característica, uma prosa rebuscada e algo poética que influenciou os primeiros textos de teatro que escrevi para o grupo. Curiosamente, com o passar dos anos, a experiência de fazer teatro regularmente acabou por modificar um pouco a minha forma de escrever: a investigação, as conversas com os atores do grupo e o feed back do público fizeram-me simplificar a forma e adensar o conteúdo. Posso dizer que a experiência do teatro depurou e apurou a minha escrita.
A questão de representar e encenar é diferente: o teatro fascina-me enquanto fenómeno artístico global, todas as potencialidades criativas podem ser desenvolvidas nessa forma de arte, porque ela congrega todas as linguagens. Isso confere-lhe, inclusivamente, um grande poder de intervenção na sociedade, que não deve ser desperdiçado. Mas, além de tudo isso, o teatro é um laboratório de conhecimento do ser humano como talvez não exista outro. Dediquei-me à representação e à encenação (de uma forma puramente autodidata, mas com muita seriedade e pesquisa) porque queria conhecer-me melhor e superar os meus limites. Se hoje, na pessoa que sou fora da escrita, sou muito mais desinibido e até sociável, é ao teatro que o devo. Mas esse tem sido um processo paralelo ao da escrita, quase independente dele.
Preferes escrever romances ou para teatro, consegues escolher?
Não consigo, nem acho que seja importante fazê-lo. São experiências demasiado diferentes. A escrita para teatro tem uma concretização mais rápida: a ideia materializa-se em diálogos das personagens colocadas em cena em ambientes recheados de signos. Não é que seja simples de fazer, mas é algo que, no meu processo, flui com alguma rapidez. Porém, o resultado não se destina a ser lido diretamente pelo público, mas a ser trabalhado por um dramaturgista e implantado num palco por um encenador e atores e técnicos, etc... Por outras palavras, quando escrevo teatro sei que não se pretende que o público tenha acesso ao que eu escrevo, mas à leitura que os artistas fazem daquilo que eu escrevo. Então, há que não ser demasiado rígido, demasiado fechado, demasiado “ditatorial”. De certa forma, a rapidez de concretização de um texto teatral tem a ver com o facto de que ele tem de ficar um pouco aberto, para ser tomado por outros.
O romance, sem ser necessariamente mais complexo, é mais lento no processo, precisamente porque é mais imediato na relação com o público. O leitor tem acesso direto ao que eu escrevo, sem qualquer interferência ou acrescento (a não ser o trabalho de edição, que pode valorizar muito o que está escrito). Por isso, o resultado tem de ser exatamente tudo o que eu quero que seja, porque ninguém vai dar-lhe mais nada. Isto não quer dizer que o romance tenha uma escrita mais cuidada, mas é alvo de um escrúpulo diferente.
Além disso, a escrita de um romance vive uma noção de tempo diferente da escrita teatral. Por exemplo: um homem está sentado numa esplanada e vê passar uma mulher; ela sorri-lhe e ele fica deslumbrado; depois ela afasta-se com a maior indiferença. Eu posso, num romance, descrever esta cena ao longo de três ou quatro páginas, com todos os detalhes do homem e da mulher, modos de ser e pensar e até de vestir, sentimentos de um e de outro, ambiente circundante e possíveis reações de quem observa de fora. E o leitor pode ler e reler essas páginas, demorar-se aí o tempo que quiser. Na escrita teatral, ao contrário, o que é preciso é transmitir a ideia do tempo real em que a cena acontece, para que ela seja montada de modo a proporcionar o impacto desse tempo real. E, ao mesmo tempo, deixar a coisa suficientemente aberta para que, se for essa a opção, seja assumidamente subvertida por uma interpretação divergente.
No fundo, são exercícios demasiado diferentes, e ambos suficientemente aliciantes, para que seja possível ter uma preferência.
É difícil conciliar essas atividades com a tua carreira profissional?
A minha profissão é o ensino. Ser professor põe-me permanentemente em contacto com pessoas: colegas, alunos, pais dos alunos, funcionários… Ora, as pessoas são o grande tema da minha escrita, por isso a atividade profissional acaba por ser a minha grande fonte de inspiração. A conciliação só é difícil na questão do tempo: sou um professor avesso a rotinas, todos os anos preparo novamente as aulas, estudo e aprofundo os conteúdos, diversifico estratégias e atividades. Isto ocupa-me muito tempo e cada vez mais sinto necessidade de mais tempo para escrever. É, neste aspeto, uma conciliação difícil onde, inevitavelmente, quem perde é a escrita e o teatro, porque no desempenho profissional não pode haver falhas.
Podes falar-nos um pouco do processo de publicação do teu primeiro romance “Nós, Vida”? Tentaste várias editoras? Como chegaste à Livros de Ontem?
Na verdade, foi a Livros de Ontem que chegou até mim. O João Batista, que foi meu aluno e sabia que eu me dedicava à escrita, desafiou-me a enviar-lhe um original que me apetecesse publicar. Confesso que, embora muita gente à minha volta me pressionasse nesse sentido, nunca tinha pensado seriamente na hipótese de uma publicação. É certo que sonhava com isso, mas nunca tinha dado nenhum passo real nesse sentido. Para uma pessoa introvertida como eu sou, o mundo editorial sempre se afigurou demasiado impessoal e devorador. Mas a amizade do João levou-me a corresponder ao desafio: reescrevi totalmente o “Nós, Vida”, que já tinha sido prosa e depois peça de teatro, enviei-lho e, perante o seu entusiasmo, percebi que talvez fosse o momento de apostar. Em boa hora o fiz, porque, além de estar a apreciar imenso todo este processo, sinto-me feliz por ver este “Nós, Vida”, que começou a ser escrito há cerca de trinta anos, concretizado sob a forma de livro (e e-book e audiobook) e partilhado com todas as pessoas que quiserem lê-lo.
fonte: https://theartboulevard.org/pt/lab-pt/informacoes-uteis/post/4277/entrevista-alvaro-cordeiro-escritor