"Vocês não vão fechar a minha loja, né? Aqui é o meu ganha pão", perguntou Ferrez, ao ver o cenário que o fotógrafo montava para fazer a foto ao lado, ocupando quase todo o espaço. O escritor acabava de chegar, pontualmente no horário combinado para essa entrevista, no Capão Redondo. O bairro, que fica a mais de uma hora de distância do centro de São Paulo, abriga a loja de roupas e acessórios que o escritor paulistano de 39 anos criou há 16 anos. "Livro não dá dinheiro, só dá Ibope", diz ele, que está publicando seu 11º livro, Os ricos também morrem, pela Editora Planeta. A pergunta, que assustou, foi seguida de piada.
Autor da chamada 'literatura marginal' ou 'literatura combativa' - ou os dois—, Ferrez começou a escrever aos sete anos, copiando trechos da Bíblia porque "era o único livro que eu tinha na mão". Aos 12, escrevia poesia. Em 1997, lançou o primeiro livro de poemas. Seu pai, que foi motorista a vida toda, levou carne para a família comer pela primeira vez quando Ferrez tinha 15 anos. A realidade na periferia vivida pelo escritor é o que alimenta as linhas agressivas dos seus textos. Crítico e ácido, Ferrez é também irônico e engraçado, características muito expostas nos contos do novo livro.
Nasceu em Valo Velho, um bairro pertencente ao Capão Redondo, na zona sul de São Paulo. Foi para o Capão aos três anos de idade, onde vive até hoje com a mulher e uma filha. Não pensa em sair de lá, ainda que seja um dos bairros mais perigosos de São Paulo. Pouco após o término desta entrevista, houve um assassinato em uma rua próxima de onde estávamos, segundo informava a rádio. Ferrez não cogita ir embora do bairro por duas razões: A primeira é que "aqui eu sou importante. Em outro lugar, eu não sou nada". E a segunda tem a ver com a sua própria literatura e sua própria voz: "Daqui eu tiro o tom das minhas histórias".
Eu acho fantástico o poder da mídia e da classe alta. Eles conseguem fazer com que o povo fique contra o povo
Pergunta. Seu novo livro é feito apenas de contos inéditos?
Resposta. Não, já publiquei alguns. Mas eu fiz esse livro para ser falado na rua, para ser uma piada. Eu queria sentir o que eu senti quando escreviCapão Pecado (seu primeiro romance, publicado em 2000) e o Manual Prático do Ódio (2003), que é ver as pessoas comentarem sobre os personagens nas ruas...
P. Isso acontecia?
R. Muito. As pessoas me paravam na rua e diziam “meu, e aquela mina é mó pilantra, traiu o cara...” Eu ia nas escolas e os alunos me paravam para perguntar sobre um capítulo do livro. Me ligavam da cadeia pra perguntar do Manual Prático do Ódio. Me diziam “mano, não to entendendo, fala aí, o que que quer dizer isso?”. E eu dizia: mano, cê tá falando de onde? De [presídio] Presidente Bernardes? Para, to fora”.
P. E você queria que isso acontecesse de novo?
R. Sim, porque deu saudade de ver as pessoas comentando. O que eu tinha era isso, eu não tenho mais nada além de ver as pessoas lendo as minhas histórias e comentando comigo. Eu cheguei a escrever um livro com contos mais formais e tinha uns oito contos prontos.
P. Formais, você quer dizer com uma linguagem menos coloquial que essa sua?
Não tem como você escrever uma coisa, sair na esquina, ver um cara morto e não sentir nada
R. Isso. E aí eu estava numa festa e queria fazer as pessoas rirem, e aí eu começava a dizer: “você viu a história do Bolonha?”, aí eu contava a história do Bolonha, as pessoas começavam a rir... E aí eu ia ler meus contos novos, esses mais formais, e ninguém prestava atenção. E eu falava: O que foi? E as pessoas: Conta a história do Bolonha, mano. Mas aquilo era uma brincadeira, eu dizia. Não, mas aquilo é mais da hora que isso aí. Aí eu escrevi esses contos e passei a ler eles nas escolas. A história do pintinho é a mesma coisa (um dos contos do novo livro). A história do ovo também é boa, onde eu vou as pessoas pedem. Na Alemanha já me pediram “conta a história do ovo”.